
Conto folclórico com adaptações.
Por Robson Matos
Dizem que em Breves, lá pelos idos da década de 1980, quem não respeitava os encantos da floresta acabava aprendendo do jeito mais difícil. Foi nessa época que Zequinha, menino de alma doce e coração ribeirinho, aprendeu que com os espíritos da floresta não se brinca.
Morava com os pais, irmãos e a sua avó Maria numa casa simples, mas de quintal imenso, no coração da cidade. Mangueiras, goiabeiras e jambeiros formavam um santuário natural, onde ele criava com zelo curiós, patativas e bicudos — alegria de sua infância.
Era vizinho do bangalô da Dona Lulú, que tinha um quintal que parecia mais uma chácara, onde o som dos passarinhos se misturava ao murmúrio do vento.

No cair da tarde de um céu rosado, Zequinha voltava do campinho de moínha, com a camisa suada grudando no peito e os pés cobertos de pó de serra. Ao empurrar o portão de madeira, viu algo estranho. Um menino parado ao lado das gaiolas, com olhar vidrado nos pássaros. Era baixinho, pele queimada pelo sol, olhos escuros e vivos. Tinha o cabelo liso caindo sobre a testa e vestia só um calção azul desbotado, como os usados em peladas de várzea.
— Ei! — chamou Zequinha, curioso. — Tá procurando alguém?
O menino se virou devagar, com um sorriso torto no rosto.
— Tenho fome… Tem pão?
O pedido foi simples, mas algo naquele olhar o deixou inquieto. Ainda assim, correu até a cozinha.
— Mãe, tem como botar um pouco de comida pro menino que tá lá fora? Tá com fome.
— Que menino, Zequinha? — perguntou a mãe, espiando pela janela, sem ver ninguém.
— Ué, ele tá lá no pátio, perto dos passarinhos…
Pegou uma vasilha com arroz, feijão, frango e farinha e voltou apressado. Foi aí que viu: o menino de calção se pendurava na gaiola do curió mais bonito, tentando abrir a portinhola.
— Ei, larga meu passarinho!
O menino o encarou por um segundo — olhos fundos, famintos, e então… saltou. Não como um menino normal. O salto foi alto, impossível para uma criança que aparentava ter uns oito anos, como se tivesse molas nos pés ou asas invisíveis. Caiu no chão como um gato e disparou em direção à rua lateral.

Zequinha correu atrás. Por conta do futebol, era bom corredor, mas aquele menino parecia feito de vento. Passaram pelo campo do SESP, pelo muro da antiga escolinha do Rotary e chegaram perto da sede do MAC, onde a luz do fim de tarde já mal tocava o chão.
Foi ali que ele sumiu.
Nada. Nem poeira, nem respiração, nem pegadas.
Zequinha perguntou aos vizinhos, no boteco do Seu Manjuca e a um vigia que varria a calçada do MAC:
— O senhor viu um menino correndo por aqui?
— Menino? Não vi ninguém, rapaz… — disse um, coçando a cabeça. — Só tu mesmo…
De volta pra casa, ofegante, contou tudo à mãe. Ela apenas o olhou, mandou tomar banho e jantar. Mas por volta das dez da noite, veio a febre. Forte. O corpo tremia, a barriga revirava, e os olhos lacrimejavam. Foi levado às pressas ao hospital. Os médicos disseram que era uma virose. A mãe não acreditou.
No dia seguinte, ainda meio fraco, sentou-se à rede da avó. Ela passou a mão enrugada em sua testa, com um carinho antigo e firme.
— Esse menino que tu viu… não era menino, Zequinha. Era um encantado. Talvez um curumim da mata, enviado pelos espíritos. Eles não gostam de ver passarinho preso, meu filho.
— Mas, vó… eu só cuidava deles…
— Cuidava, sim… Mas passarinho nasceu pra cantar solto. Faz o que tua avó diz. Vai, solta todos eles. E nunca mais prende um canto de liberdade.
Zequinha hesitou, mas no mesmo dia abriu uma a uma as portinholas. Os curiós, as patativas e os bicudos foram voando, timidamente, até sumirem no céu acobreado do entardecer.
Desde então, nunca mais teve febres misteriosas, nem sonhos estranhos. Nunca mais viu o menino de olhos famintos e salto de onça. Mas, às vezes, quando o sol se põe atrás dos cajueiros, ele jura ouvir um assobio bonito no alto da mangueira. Um canto de curió. Livre. E feliz.
Hoje, homem feito, Zequinha ainda deixa sementes e água no quintal. Não prende mais nada. Entendeu que quem ama, deixa livre. E que, no Marajó, onde a floresta respira junto com o povo, os encantos não perdoam desrespeito.
E como diria a vozinha dele, entre um gole de café e outro:
— Quem mexe com o que é da mata, tem que saber pedir licença…